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quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

O avanço da direita e a causa oculta, por Boaventura de Sousa Santos


Charge: Jota Camelo
A verdade de um sistema errado é o erro. Para ser politicamente eficaz, este erro tem de ser incessantemente repetido, amplamente difundido e aceito pela população como a única verdade possível e credível. Não se trata de uma qualquer repetição. É necessário que cada vez que o erro é posto em prática, o seja como um ato inaugural – a verdade finalmente encontrada para resolver os problemas da sociedade. Não se trata de uma qualquer difusão. É necessário que o que se difunde seja percebido como algo com que naturalmente temos de estar de acordo. Não se trata, enfim, de uma qualquer aceitação. É necessário que o que se aceita seja aceito para o bem de todos e que, se envolver algum sacrifício, ele seja o preço a pagar por um bem maior no futuro.
O avanço das forças políticas de direita e extrema-direita um pouco por todo o mundo assenta nesses pressupostos. É difícil imaginar a sobrevivência da democracia numa sociedade em que tais pressupostos se concretizem plenamente, mas os sinais de que tal concretização pode estar mais próxima do que se pensa são muitos e merecem uma reflexão antes que seja demasiado tarde. Abordarei os seguintes sinais: a reiteração do erro e a crise permanente; a orgia da opinião e a fabricação massiva de ignorância; da sociedade internética à sociedade métrica.
A reiteração do erro é hoje patente. Desde há décadas, os países capitalistas centrais, mais desenvolvidos, têm assumido a responsabilidade de dedicar parte de seu orçamento à “ajuda ao desenvolvimento”. O objetivo é, como o nome indica, ajudar os países periféricos, subdesenvolvidos, a seguir a trilha do desenvolvimento e, idealmente, convergir com estes em níveis de bem-estar num futuro mais ou menos próximo. É hoje patente que o fosso que separa os países centrais dos países periféricos é cada vez maior. A chamada “crise dos refugiados” e o aumento alarmante do movimento de populações migrantes indesejadas são os sinais mais evidentes de que as condições de vida nos países periféricos são cada vez mais intoleráveis. O mesmo se diga das políticas de redução da pobreza levadas a cabo pelo Banco Mundial há décadas. O balanço é negativo se por redução da pobreza entendermos a diminuição do fosso entre ricos e pobres dentro de cada país e entre países. O fosso não tem cessado de aumentar. Do mesmo modo, as políticas de “austeridade” ou de ajustamento estrutural impostas aos países com dificuldades financeiras, têm falhado em seus objetivos e o próprio FMI tem-no reconhecido, de forma mais ou menos velada (“excesso de austeridade”, “deficiente calibração” etc).
Apesar disso, uma e outra vez as mesmas políticas vão sendo impostas como se no momento fossem a melhor ou a única solução. O mesmo se pode dizer da privatização da segurança social e, portanto, do sistema público de aposentadorias. O alvo mais recente é a Previdência Social do Brasil. Segundo os estudos disponíveis, em cerca de 70% dos casos em que a privatização foi realizada, o sistema falhou e o Estado teve de resgatar o sistema para evitar uma profunda crise social. Apesar disso, a receita continua a ser imposta e a ser vendida como a salvação do país. Por que se insiste no erro de impor medidas cujo fracasso é antecipadamente reconhecido? São muitas as razões, mas todas convergem no que considero ser a mais importante: o objetivo de criar uma situação de crise permanente, que force as decisões políticas a concentrarem-se em medidas de emergência e de curto prazo. Estas medidas, apesar de envolverem sempre a transferência de riqueza dos mais pobres para os mais ricos e imporem sacrifícios aos que menos podem suportá-los, são aceitas como necessárias e inviabilizam qualquer discussão sobre o futuro e as alternativas de médio e longo prazo.
A orgia da opinião. O erro reiterado e sua repetição não seriam possíveis sem uma mudança tectônica na opinião pública. Os últimos cem anos foram o século da expansão do direito a ter opinião. O que antes era um privilégio das classes burguesas transformou-se num direito exercido por vastas camadas da população, sobretudo nos países mais desenvolvidos. Essa expansão foi muito desigual, mas permitiu enriquecer o debate democrático com a discussão de alternativas políticas significativamente divergentes. O conceito da razão comunicativa, proposto por Jürgen Habermas, assentava na ideia de que a formulação da discussão livre de argumentos prós e contra em qualquer área de deliberação política transformava a democracia no regime político mais legítimo porque garantia a participação efetiva de todos. Acontece que nos últimos 30 anos a sociedade midiática, primeiro, e a sociedade internética, depois, produziram uma cisão insidiosa entre ter opinião e ser proprietário da opinião que se tem. Fomos expropriados da propriedade da nossa opinião e passamos a ser arrendatários ou inquilinos dela. Como não nos damos conta desta transformação, podemos continuar a pensar que tínhamos opinião e imaginar que ela era nossa. Empresários de opinião de todo tipo entraram em cena para simultaneamente reduzir o leque de opiniões possíveis e intensificar a divulgação de opiniões promovidas. Os agentes principais desta transformação foram os partidos políticos do “arco da governação”, os meios de comunicação oligopólicos e os sistemas de publicidade, inicialmente vocacionados para o consumo de massa de mercadorias, os quais foram sendo direcionados para o consumo de massa do mercado das ideias políticas. Assim surgiu a sociedade midiática e a política-espetáculo, onde as diferenças substantivas entre as posições em que se diverge são mínimas, mas apresentadas como se fossem máximas. Foi o primeiro passo.
O passo seguinte ocorreu quando da sociedade midiática passamos à sociedade internética. Nesse passo, o direito a ter opinião expandiu-se sem precedente e a expropriação da opinião de que somos usuários (mais que titulares) atingiu novos patamares. Surgiram os empresários, tanto legais quanto ilegais, da manipulação da opinião pública, de que são exemplos paradigmáticos as redes e as páginas de facebook e de whatsapp que produzem “táticas de desinformação” particularmente ativas em períodos eleitorais, como sucedeu nas eleições para o Parlamento Europeu. A conhecida organização Avaaz identificou 500 páginas suspeitas, seguidas por 32 milhões de pessoas, que geraram 67 milhões de interações (comentários, links, compartilhamentos). A empresa Facebook fechou 77 destas páginas, que eram responsáveis por 20% do fluxo de informações nas redes identificadas. Esta extraordinária manipulação da opinião teve três consequências que, apesar de passarem despercebidas, constituíram uma mudança de paradigma na comunicação social.
A primeira consequência é que este policiamento das redes legitimou-se apesar de ter controlado apenas a ponta do iceberg. O recurso cada vez mais intenso aos big data e aos algoritmos para tocar cada indivíduo nos seus gostos e preferências, e de o fazer simultaneamente para milhões de pessoas, tornou possível mostrar que os verdadeiros proprietários da nossa opinião são Bill Gates e Mark Zuckerberg. Como tudo é feito para não nos darmos conta disso, consideramo-nos devedores gratos do Eldorado de informações que nos proporcionaram e não credores de um desastre democrático de consequências imprevisíveis, pelas quais deviam ser eles responsabilizados.
A segunda é que a informação que passamos a usar, apesar de tão superficial, não pode ser contestada com argumentos. Ou é aceita, ou recusada, e os critérios para decidir são critérios de autoridade e não de verdade. Se servir os interesses do líder político de turno, o povo é exaltado como tendo finalmente opinião própria e capaz de contradizer a das elites tradicionais. Se não servir, o povo é facilmente considerado como “ignorante e incapaz de ser governado democraticamente”. Quando o povo segue a opinião do líder, é o líder que segue a opinião do povo. Quando o povo diverge da opinião do líder, deve, como povo ignorante, confiar na opinião do líder. Conforme lhe convenha, o líder “populista” pode aparecer ora como seguidor do povo, ora como seu tutor. Aqui reside a razão última de reemergência do “populismo”. Este capital de confiança cria-se facilmente na medida em que tudo se passa na intimidade do indivíduo e da sua família. Enquanto a sociedade midiática transformou a política num espetáculo, a sociedade cibernética transforma-a num show íntimo, um verdadeiro peep show em que toda a interação afetiva ocorre entre o líder e o cidadão, sem argumentos nem mediação.
A terceira consequência da sociedade internética é que as redes sociais criam dois ou mais fluxos de opinião unânime, que correm em paralelo e por isso nunca se encontram. Ou seja, em nenhum caso podem ser contraditados ou contra-argumentados numa discussão democrática. A política errada pode assim ser amplamente aceita se cavalgar um dos fluxos de unanimidade. Este é o caldo comunicacional da radicalização política, o ambiente ideal para o clima de polarização, de ódio ou de demonização do inimigo político, sem que seja necessário usar argumentos discutíveis e apenas recorrendo a frases apocalípticas.
Da sociedade internética à sociedade métrica. Vivemos uma outra orgia, a orgia da quantificação da vida individual e coletiva. Nunca as nossas vidas coletivas estiveram tão dependentes dos números dos seguidores do facebook, dos likes nas interações nas redes, dos scores nos concursos, dos rankings nas universidades, na quantificação da produção científica. Sabemos que a lógica da quantificação é extremamente seletiva e muito enviesada pelos critérios que usa e pelos campos que seleciona pra quantificar. Deixa de fora tudo o que é mais essencial à vida individual e coletiva. Deixa de fora setores sociais que, pela sua inserção social, não podem ser adequadamente contados. Os sem-teto são contados pelo fato de serem sem-teto e não pelo que fazem durante o dia; a agricultura familiar, informal, apesar de em muitos países alimentar ainda hoje a população, bem como o trabalho não pago da economia do cuidado em casa, não conta para o PIB. O que está dominantemente a cargo das mulheres não entra nas estatísticas do trabalho, apesar de crucial para reproduzir a força de trabalho. Se não for sufragada quantitativamente, a qualidade da produção científica não conta para a carreira dos pesquisadores. E o grande problema do nosso tempo é que o que não é contado não conta.
Estas são algumas das dinâmicas subterrâneas que vão minando a democracia e criando uma cultura pública e privada indefesa ante os erros, de que a direita e a extrema-direita se vão alimentando.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

A polémica equiparação fascismo-comunismo

O tema foi debatido há semanas com bastante mais paixão que razão, quando da aprovação no Parlamento Europeu de uma moção que equiparava nazismo e comunismo como de natureza igualmente criminosa e condenável. Por iniciativa do CDS, Iniciativa Liberal e Chega, a Assembleia da República prontamente discutiu um voto de aplauso à deliberação saída de Bruxelas. As bancadas da esquerda reprovaram-no por entenderem, com toda a justeza, que o paralelo estabelecido branqueava o nazismo. Todavia, o assunto é complexo e justifica alguma atenção, tanto pelo sentido histórico do paralelo, quanto pelos objetivos que a decisão visou.
A comparação tem largas décadas de existência e tem sido adiantada, com diferentes contornos, tanto no território da política quanto no mundo académico. Em 1999, o historiador Henry Rousso organizou um conjunto de estudos sobre o tema, onde foram inventariados aspetos comuns como «o lugar do ditador, as modalidades da violência política, as respostas sociais à iniciativa totalitária». Não foi, contudo, uma vontade de compreensão que fez com que a semelhança dos processos fosse agora levantada: na verdade, têm sido os partidos de direita e de extrema-direita que mais têm insistido nessa «semelhança», aproveitando-a para desenvolver junto dos eleitorados uma retórica anticomunista, antissocialista e essencialmente antidemocrática.
Não se trata de conceitos ou de experiências idênticos: o nazismo, bem como todos os fascismos, estão associados a ideologias e a regimes segregacionistas, que visam eliminar ou subjugar setores da população – etnias inteiras, minorias nacionais e religiosas, imigrantes e refugiados, segmentos sociais situados fora das elites – enquanto o comunismo é, na essência, um ideal de sociedade solidário, igualitário e justo, sendo esta tripla dimensão que lhe tem assegurado a capacidade dinâmica para sobreviver como proposta com o apoio de tantas pessoas que por ele morreram ou se bateram. Pela mesma razão, um fascista e um comunista de modo algum podem ser comparados na perspetiva que têm da sociedade e nos objetivos da sua atuação enquanto cidadãos.
É verdade que nos Estados autodesignados como do «socialismo realmente existente» se estabeleceram formas de repressão política, censura e engenharia social opressivas e que vitimaram largos milhões de pessoas. Principalmente na China de Mao e na União Soviética de Estaline, com as suas instituições de coerção física e política, e os seus gigantescos sistemas concentracionários. Mas a legitimidade que fascismo e comunismo impuseram para defender essas escolhas foi radicalmente diversa: enquanto nas experiências dos Estados socialistas o objetivo nuclear era reeducar o dissidente para produzir um «homem novo», na experiência nazi era eliminar o pária, higienizando a sociedade da sua presença. Poderá argumentar-se que para as vítimas de ambos os sistemas o resultado prático foi o mesmo – a exclusão, o medo, o sofrimento extremo, a morte –, no entanto, para as pessoas que apoiavam os regimes que lhe davam corpo, o sentido das escolhas era profundamente diverso, ou mesmo oposto.
O problema real passou pelo estabelecimento, nos Estados socialistas, de regimes de partido único, progressivamente burocratizados e em larga medida assentes no exercício da violência como instrumento de poder. Neles, a algumas conquistas em domínios importantes, corresponderam sistemas repressivos, em regra tirânicos, e sistemas económicos bloqueados, que impuseram situações de sofrimento intenso e de exclusão às populações. Sendo essas práticas impostas pelos partidos no poder, com a cumplicidade da maior parte do movimento comunista internacional, tal significou a existência real de uma dimensão de opressão e crime, ainda que diferenciada de acordo com as épocas e as geografias; porém, de modo algum ela pode ser equiparada àquela posta em marcha pelo nazismo, e proposta de uma ou de outra forma pelos diversos fascismos.
A necessidade da parte da esquerda que ainda não fez esse esforço de auto-análise encarar sem complexos o peso dessa experiência, incluindo o dos crimes cometidos, assumindo uma dinâmica que não negue, mas exclua de todo, as escolhas autoritárias do passado, poderá ajudar a esvaziar as comparações absurdas estabelecidas de forma oportunista pela opinião de direita. Será também uma maneira de exorcizar fantasmas, mobilizando-se e mobilizando no combate por uma vida melhor, mais justa, mais solidária, mais feliz e mais livre. Como, desde a sua formação no decurso do século de Oitocentos, o configurou a utopia comunista.
Rui Bebiano
Fotografia de Nikola Mihov, da série «Forget your past»
Publicado originalmente no Diário As Beiras de 14/12/2019 (versão revista).

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Boa Noite 247 - Rachadinha pode desvendar caso Marielle

Por que se insiste em uma política que não alcança seus objetivos e, ao contrário, piora o problema que diz combater?


Em 1994, a especialista Mathea Falco produziu um relatório chamado “Toward a more Effective Drug Policy” (“Para uma mais efetiva política de drogas”) sobre a situação do mercado ilegal de drogas no EUA. Seu texto baseou-se em relatórios emitidos por órgãos oficiais do governo estadunidense, como o Departamento de Justiça e um comitê especial formado no Congresso Nacional. Cruzando os dados, Falco constou aquilo que muitos estudiosos, profissionais da saúde, militares e policiais já haviam notado: a “guerra contra as drogas” tinha fracassado. 

Falco, que foi a primeira subsecretária de Estado para aplicação de leis antinarcóticos (ainda no governo e Jimmy Carter, 1977-1981), alertava que desde a formação dos primeiros tratados internacionais e das correspondentes leis nacionais de controle sobre drogas psicoativas, entre os anos 1910 e 1930, o rigor na repressão aos produtores, vendedores e consumidores dessas drogas só havia aumentado. No entanto, o número dessas pessoas, também. O que era um mercado praticamente sem regulação e com volume de usuários relativamente pequeno em inícios do século XX, tinha se transformado numa potente economia ilegal, de alcance transnacional, penetrando instituições políticas, forças de segurança, o sistema financeiro e os hábitos cotidianos de milhões de pessoas em todo o mundo.

Por isso, se a meta do proibicionismo era banir determinadas drogas e os costumes a elas relacionados, o método escolhido para alcançar essa meta não se demonstrara eficiente. É importante saber que os documentos comentados por Falco não foram produzidos por hippies, deputados “de esquerda” ou cientistas “pró-drogas”, mas por burocratas, técnicos ministeriais e uma comissão mista do Congresso, formada por Democratas e Republicanos, a partir de anos de levantamentos de dados epidemiológicos, criminalísticos, econômicos e sociológicos que lhes obrigaram a aceitar o que poucos gostariam de admitir: os bilhões de dólares gastos em combater o narcotráfico não se reverteram em menor produção de drogas, em diminuição do comércio ilegal ou do número de consumidores. 

Essas constatações foram ainda mais impactantes pelo momento em que foram publicadas: faziam referência ao governo republicano de George H.W. Bush (1989-1992), que havia sido severo na manutenção da política de enfrentamento militarizado ao narcotráfico começado pelo presidente anterior, Ronald Reagan (de quem Bush Pai havia sido vice-presidente). Os governos de Reagan e Bush Pai aprofundaram e deram vida à “guerra às drogas” lançada por Richard Nixon no início dos anos 1970. Isso significou, basicamente, três coisas: 1) apostar na tese do combate às “zonas de produção” de cocaína, maconha e heroína (sempre localizadas em países do Terceiro Mundo); 2) aumentar a pressão diplomática e econômica sobre os países considerados “fontes” de drogas ilegais, chantageando-os para que aderissem aos métodos de destruição de colheitas, deportação de traficantes e abertura de dados sigilosos das inteligências nacionais 3) pressionar para que os militares de países considerados bases para a “produção” de drogas ilícitas se envolvessem nas chamadas operações anti-drogas (“counter-narcotics”) que eram muito parecidas, e por vezes se confundiam, com as já conhecidas operações anti-guerrilhas/anti-comunismo (“counter-insurgency”). 
Os esforços repressivos levaram à prisão, morte ou deportação de grandes e famosos narcotraficantes, como o colombiano Pablo Escobar, o mexicano Miguel Ángel Felix Gallardo e o boliviano Roberto Suárez. Mas, surpresa, o narcotráfico não acabou. Tampouco diminuiu. Começou a acontecer o que os estudiosos chamam de “efeito balão”: assim como uma bexiga cheia, quando uma extremidade é apertada, a outra infla. Com o narcotráfico funciona assim: a repressão cerrada em uma zona ou sobre um determinando grupo ilegal estimula o deslocamento das rotas, a entrada em cena de novos atores e a abertura de novos laboratórios e novas fronteiras agrícolas. E pior: assim como em um cassino ou uma bolsa de valores, quanto maior é o risco, maior é a remuneração e mais poderosos são apostadores. Com isso, o endurecimento da “guerra às drogas” terminou promovendo a eliminação dos peixes menores, favorecendo os tubarões, ou seja, os narcotraficantes com maior poder econômico, maior capacidade de corromper juízes, autoridades policiais, militares e aduaneiras, comprar empresas legais para lavar seus ganhos ilícitos, investir em projetos sociais para conquistar o apoio de populações carentes, além de investir em armas e no treinamento de exércitos paramilitares. 
Um passeio pelos relatórios publicados anualmente pelo Escritório das Nações Unidas sobre Crimes e Drogas (UNODC, na sigla em inglês) é sempre desalentador para quem acredita no proibicionismo. Os World Drug Reports mostram panoramas sombrios em mapas e gráficos muito coloridos e bem-feitos: crescente número de hectares de plantas a partir das quais se produz drogas ilícitas, dinamização das rotas mundiais (terrestres, marítimas e aéreas) controladas por grupos narcotraficantes, aumento da conexão entre narcotráfico e terrorismo, aprofundamento da corrupção de agentes do Estado ligada ao dinheiro gerado pelo tráfico de drogas etc. Conhecer os relatórios da ONU e saber da existência daqueles documentos produzidos há quase trinta anos nos EUA nos leva a pensar: por que se insiste em uma política que não alcança seus objetivos e, ao contrário, que piora o problema que diz combater? Em qualquer empresa, ou ainda, em qualquer lar, uma ideia que repetidamente não dá certo costuma ser trocada por outra. O que acontece, então, no caso do probicionismo e da “guerra às drogas”?
"Há muitos anos tenho dito e escrito que proibicionismo e a “guerra às drogas” são fracassos exitosos: geram muitos ganhos e vantagens justamente na medida em que “dão errado”.
Mathea Falco percebeu isso e soou o alerta. Não adiantou nada. Por que será? O que de tão poderoso existe na manutenção dessa “guerra” se a meta de fazer com que as pessoas sofram menos por conta da violência do narcotráfico ou do abuso de drogas está visivelmente longe de ser alcançada? A resposta não é simples, mas ela existe. E, a partir dela, é que se pode entender as propostas de reforma do sistema proibicionista que passam por projetos de legalização ou descriminalização de drogas hoje ilegais. Na coluna do mês passado, havia prometido ir direto a esse ponto. No entanto, foi preciso esse degrau intermediário para nos fazer lembrar de que há muito tempo já se sabe que a “guerra às drogas” é incapaz de entregar o que promete e, que mesmo assim, ela vem sendo mantida e renovada. Voltaremos a esse ponto em nosso próximo encontro. Aí, então, poderemos compreender um pouco melhor como um desastre completo pode ser tão idolatrado e reiterado e como pessoas que sinceramente repudiam a dor e o sofrimento do próximo podem seguir acreditando nessa “guerra”.