Os inquietantes mistérios do voo TP173 para Caracas
Postado em 22/02/2020
por José Goulão [*]
Conivência da administração?
Por muito que o Chefe de Estado, ministros, TAP e a comunicação
social corporativa tentem compor uma imagem de vitimização, própria de
quem pretende desviar o assunto da sua essência, a verdade é que
existiram anomalias graves, e que estão a necessitar de explicações
sérias, relacionadas com o voo TP173 de Lisboa para Caracas, no dia 13
de fevereiro.
O ministro da Administração Interna prometeu uma investigação às
ocorrências. Apesar de não ter sido concluída – pelo menos os seus
resultados não foram divulgados a quem tem mais direito de conhecê-los,
os portugueses – o Chefe de Estado acha que as decisões da Venezuela
anunciadas na sequência do comportamento da TAP no citado voo são
“injustas e inaceitáveis”; o ministro dos Estrangeiros, o mesmo que se
preocupa com o racismo sobretudo porque “dá má imagem de Portugal no
estrangeiro”, entende que as atitudes de Caracas são “inamistosas e
injustificadas”; e a companhia aérea considera, mesmo sem dar
explicações oficiais sobre o ocorrido, que a suspensão de voos para a
capital venezuelana durante 90 dias imposta por Caracas é uma “medida
gravosa que prejudica os nossos passageiros”.
Ao Chefe de Estado teria sido melhor esperar pelo apuramento dos
factos porque a Pátria não está acima de qualquer suspeita e alguns
dados que circulam exigem aprofundamento e o correspondente
esclarecimento; ao chefe das Necessidades poderá perguntar-se, já que
fala de amizade, se não será “inamistoso” para os venezuelanos o
“reconhecimento político” atribuído a um indivíduo que não participou em
eleições presidenciais e que corre mundo a pedir aos governos que
aprofundem sanções contra o seu povo; e à TAP será oportuno lembrar que
deveria ter pensado nos passageiros logo na altura em que tornou
possível a existência de ocorrências que estão na base das acusações
venezuelanas.
O estranho caso do senhor António Márquez
Enunciando os factos que correm mundo desde o dia 13 de fevereiro
não será difícil perceber que é necessário investigá-los com
profundidade e apurar responsabilidades. Fazer antecipadamente de
vítima, porém, é um mau prenúncio quanto à disponibilidade das
autoridades portuguesas para atuarem com transparência.
No voo TP173 de Lisboa para Caracas embarcou Juan Guaidó, cidadão
venezuelano que há um ano se autoproclamou presidente do país sem ter
concorrido ao cargo e que recentemente teve de provocar uma secessão na
Assembleia Nacional para continuar a afirmar-se “presidente” deste
órgão, sendo-o apenas de uma facção dissidente. De Guaidó, um
instrumento nas mãos de Donald Trump, conhecem-se igualmente práticas
terroristas, golpistas e a apropriação a título pessoal de bens enviados
para o país a título “humanitário”.
O nome de Juan Guaidó não figurou, no entanto, na lista de
passageiros do voo TP173. Terá o “interino” viajado clandestinamente?
Nem tanto: fê-lo disfarçadamente: tornou-se “António Márquez” recorrendo
a outra combinação de nomes presentes na sua identificação. Isto é, por
alguma razão que ele, a TAP, provavelmente o ministro Santos Silva e o
Departamento de Estado norte-americano saberão, o “presidente” e também
golpista de 30 de Abril de 2019 quis passar despercebido num voo da TAP
que o levou de regresso à Pátria depois de ter andado a pedir a alguns
dos principais dirigentes do mundo que contribuam com novas sanções para
a fome dos seus compatriotas.
Fome? Exagero? Definitivamente não. Eis como em 12 de Outubro de
2018 o embaixador dos Estados Unidos em Caracas, William Brownfield,
definiu as sanções contra a Venezuela:
“Devemos tratá-las como uma agonia, uma tragédia continuada até que
chegue a um final (…) e se pudermos fazer alguma coisa para acelerá-la
devemos fazê-la, mas devemos fazê-la percebendo que irá ter um impacto
negativo em milhões de pessoas que já estão com dificuldades em
encontrar alimentos e medicamentos (…) o fim desejado justifica este
severo castigo”.
Foi em nome deste “fim” que Juan Guaidó fez o recente périplo pela
Europa e pelos Estados Unidos até entrar como António Márquez no avião
da TAP que o devolveu a Caracas.
Um tio à prova de bala
Com Juan ou António viajou outro Márquez, Juan José, seu tio, “seu
mentor e seu guia que o incentivou a realizar os seus sonhos e
objectivos”, como o definiu um velho amigo do próprio, Ángel Briceño,
numa entrevista à BBC.
Juan José Márquez entrou no avião da TAP envergando um colete à
prova de bala, o que é absolutamente vedado pelos regulamentos da
Organização Internacional da Aviação Civil (OIAC). Desconhece-se a razão
de tal precaução – mas, segundo as alegações das autoridades
venezuelanas, a companhia de bandeira portuguesa não tomou as
necessárias medidas para fazer cumprir os regulamentos. Nas bagagens do
tio Márquez viajou ainda um outro colete à prova de bala, não detectado
pelos serviços de segurança do aeroporto. Nas declarações conhecidas
atribuídas à TAP não surge qualquer alusão ao comprometedor episódio
relacionado com este tipo de vestuário ilegal.
O tio Márquez, ao que dizem as autoridades venezuelanas, era uma
autêntica caixinha de surpresas. À chegada a Caracas os serviços de
segurança apreenderam-lhe materiais explosivos nos compartimentos para
as baterias de duas lanternas eléctricas e em cinco recargas de
perfumes.
Nada disto foi detectado pela segurança do lado de Lisboa. E
tê-lo-ia sido, assegura uma declaração atribuída a uma fonte da TAP.
Porém, há estudos das universidades norte-americanas de San Diego e John
Hopkins segundo os quais os scanners de segurança de 160 aeroportos, só
nos Estados Unidos, não conseguem detectar o explosivo C4, aquele de
que falam os responsáveis de Caracas.
Haverá outras razões para não ter sido detectada matéria explosiva?
Juan José Márquez, tio de Juan Guaidó, aliás António Márquez, terá mesmo
viajado com explosivos – além dos coletes à prova de bala – a bordo do
avião da TAP que fez o voo TP173 para Caracas no dia 13 de fevereiro? É
indispensável que esta situação seja apurada até às últimas
consequências, exatamente por questões de segurança dos passageiros e da
credibilidade da companhia. A Venezuela foi abrindo caminho entregando
provas do que diz à OIAC.
A gravidade deste caso torna ainda mais difícil de perceber a
minimização do episódio e a imagem de ofendidas assumida pelas
autoridades portuguesas.
Onde entra o embaixador
À chegada a Caracas, muito naturalmente, Juan José Márquez foi
detido devido à posse de explosivos. Assim aconteceria, por exemplo, na
Bélgica, em Portugal, nos Estados Unidos, na Alemanha ou em qualquer
outro país “civilizado”. A investigação da sua bagagem revelou ainda a
existência de uma pen com documentos da CIA que demonstram a ligação
operacional entre o explosivo viajante e um agente identificado como
“Charles”.
O comportamento dos serviços de segurança venezuelanos, porém, foi
de “intimidação e detenção arbitrária”, segundo o ministro português dos
Negócios Estrangeiros, Santos Silva.
Como estará então o ministro tão seguro da “arbitrariedade” num caso
de detenção por razões que parecem óbvias? Aqui fica uma hipótese:
graças à opinião transmitida pelo embaixador de Portugal em Caracas,
Carlos Sousa Amaro, de quem as autoridades venezuelanas dizem “ter
interferido nos assuntos internos” do país ao “interceder por Juan José
Márquez” quando este foi detido. Defender assim tão às cegas um suspeito
de transportar explosivos num avião?
De modo que, seguindo a pista aberta pelas explicações oriundas da
Venezuela, o embaixador de Portugal estaria no aeroporto de Caracas para
receber o avião que transportou Juan Guiado, aliás transformado num
vulgar António Márquez na lista de passageiros da TAP. Presumindo-se, da
maneira mais elementar, que o pretendido anonimato do “presidente”
venezuelano golpista era do conhecimento de responsáveis pela diplomacia
de Portugal e da sua companhia aérea de bandeira – a TAP.
Pelo caminho mais longo
A somar ao “anonimato” de Guaidó na lista de passageiros, aos
coletes à prova de bala e aos explosivos do tio, às nada diplomáticas
diligências do embaixador de Portugal, a outras supostas irregularidades
de que falam as autoridades venezuelanas há ainda mais um elemento de
mistério: o roteiro da viagem do trumpista Guaidó.
O que trouxe o “interino” e o tio quase anonimamente até Lisboa,
vindos de Boston, quando poderiam ter ligado o Massachusets à Venezuela
de maneira muito mais célere e sem mudar de continente?
Talvez seja esta mais uma questão do “interesse nacional” de que os
portugueses nada têm de saber pois é sua obrigação confiar em pessoas
como o ministro Santos Silva e os “segredos” próprios do métier. Mesmo
que não continue a compreender-se o que impeliu o chefe das Necessidades
para o “reconhecimento político” de Guaidó paralelo à admissão, “de
facto”, de Nicolás Maduro como presidente.
O “reconhecimento político” do também presidente do grupo fascista
Voluntad Popular deve-se, segundo Santos Silva, à sua posição “para
desencadear eleições livres e transparentes”. O que é extraordinário,
porque se trata do mesmo indivíduo que interpretou pelo menos duas
tentativas de golpe de Estado desde que se proclamou “presidente
interino” e que protagoniza a guerra híbrida montada e desenvolvida em
Washington na vigência dos três últimos presidentes norte-americanos
para mudar antidemocraticamente o regime em Caracas.
As sanções criminosas, asfixiantes e em muitos casos mortais contra
os venezuelanos constituem a frente mais violenta dessa guerra, acima
das quais estará unicamente a intervenção militar, sempre no horizonte.
Como pode um governo, como o de Portugal, que se diz preocupado com os
venezuelanos e a comunidade portuguesa outorgar o seu “reconhecimento
político” a um agente desestabilizador ao serviço de interesses
contrários aos dos venezuelanos e da comunidade portuguesa – capaz de
percorrer o mundo a pedir ainda mais sanções?
Sanções – e quem o diz é o embaixador norte-americano William Brownfield – que
“têm impacto em todo o povo, no cidadão comum e corrente
(…) ainda que isso provoque um período de sofrimento de meses, talvez
de anos”.
Ou, como escreveu o almirante norte-americano Kurt Tidd, ainda como
chefe do Comando Sul, nos seus planos da operação “Venezuela Freedom 2”:
“É necessário aumentar o processo de desestabilização e
de falta de abastecimentos (…) recorrer à matriz através da qual a
Venezuela entre numa etapa de crise humanitária por falta de alimentos,
água e medicamentos”.
Trata-se ainda, diz o almirante Tidd, de
“intensificar a descapitalização do país, a fuga de
capitais, a deterioração da moeda nacional mediante a aplicação de novas
medidas inflacionárias que incrementem essa deterioração. (…) Obstruir
todas as importações e, ao mesmo tempo, desmotivar os possíveis
investidores estrangeiros”.
Juan Guaidó é um instrumento destas malfeitorias. O seu
“reconhecimento político” é um ato que serve objetivamente os interesses
norte-americanos, por muito que o ministro Santos Silva tente fazer
crer o contrário e afirme cingir-se aos “interesses portugueses”. O
Departamento de Estado norte-americano foi muito claro em 9 de janeiro
de 2018: “As sanções financeiras que temos imposto obrigaram o governo
(da Venezuela) a cair em incumprimento. Estamos a viver um momento de
colapso total na Venezuela. Isso é porque a nossa política funciona, a
nossa estratégia funciona e iremos mantê-la”.
É neste cenário abrangente que tem de ser enquadrado o inquietante
imbróglio do voo TP173 e dos seus passageiros da família Márquez. Não
vale a pena o ministro dos Estrangeiros tentar convencer os portugueses
de que a suspensão da TAP imposta pelo governo legítimo da Venezuela é
um “ato de retaliação” pelo reconhecimento de Juan Guaidó por Portugal.
Nesse caso Caracas teria punido as companhias de bandeira dos mais de 50
países que apostaram no golpismo dirigido por Trump – o que não
aconteceu. Ao invés, é a companhia aérea nacional da Venezuela que sofre
– e arbitrariamente – os efeitos das sanções ditadas de Washington.
Alguma coisa a TAP e a diplomacia portuguesa fizeram em 13 de fevereiro;
seja o que for, é essencial que venha a conhecer-se. Bem basta que
continuem os silêncios ministeriais sobre a eventual cumplicidade
portuguesa – e da União Europeia – na apropriação indevida por Londres e
Washington das toneladas de ouro venezuelano depositadas no Banco de
Inglaterra; ou sobre o congelamento das contas da Venezuela no Novo
Banco.
No website da Embaixada portuguesa em Caracas pode ler-se: a
Venezuela “é um dos países da América Latina com o qual Portugal vem
mantendo relações mais próximas”.
Estranha diplomacia está.
[*] Jornalista.
O original encontra-se em www.oladooculto.com/noticias.php?id=649
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
22/Fev/20
Extraído de: http://www.patrialatina.com.br/os-inquietantes-misterios-do-voo-tp173-para-caracas/?fbclid=IwAR3DUc9AyusX8BiUK_ZdP_PubJN26YDfvse0jpXlmSNDYtaKr3NkChRxXxA