"Penas por tráfico de drogas atingem as famílias das mulheres condenadas"
Maíra Fernandes — Tenho esperança de que as audiências de custódia ajudem a evitar a manutenção das prisões, embora isso não vá resolver o problema do processo como um todo. É no momento da prisão e na delegacia que uso vira tráfico, que furto vira roubo, que as histórias se fazem, se constroem, e que vão para o papel. Essas prisões têm tudo a ver com o lugar onde houve a apreensão da droga. Como a lei não distingue precisamente uso de tráfico, uma mesma quantidade de droga apreendida no Complexo do Alemão [na Zona Norte do Rio] e na Rua Farme de Amoedo [em Ipanema, na Zona Sul do Rio] pode gerar um registro de tráfico no primeiro caso e um de uso no segundo. Então, tem muito a ver com o CEP, a cor, com o nível social do abordado. No caso das mulheres, além das usuárias presas como traficantes, há aquelas que são presas por tráfico de drogas porque houve uma apreensão de drogas em sua casa, só que quem comercializa aquela droga é o marido, o pai, o filho. Mas como é a mulher que está em casa no momento, ela acaba sendo presa em flagrante. A palavra do policial acaba tendo um efeito gigantesco no processo, é muito difícil revertê-la, porque considera-se que o policial tem fé pública. Sem outras testemunhas, fica a versão do policial contra a versão do réu ou da ré. Daí é quase impossível conseguir uma absolvição.
Maíra Fernandes — É gigantesco. O fato de que 64% das presas estão lá por tráfico de drogas nos leva a repensar a necessidade desse encarceramento. A Lei de Drogas aumentou o encarceramento de uma forma enorme, e mais ainda o feminino, que cresceu 567% de 2000 a 2014. Esse número é monstruoso, é assustador. E o mais comum é o encarceramento feminino por tráfico privilegiado. Tal como no mercado formal de trabalho, também os chefes do tráfico de drogas destinam às mulheres as posições mais subalternas e menos remuneradas. São raras as que chegam a ocupar postos mais altos nessa hierarquia, de modo que a maioria está em posição mais vulnerável e suscetível ao encarceramento. Nessa seara, a feminização da pobreza e a seletividade do sistema penal mostram seus efeitos mais perversos.
Maíra Fernandes — Pode acontecer sim, pois os filhos ficam desassistidos. É um círculo vicioso do qual a gente não consegue sair. É muito triste.
Maíra Fernandes — Sem dúvida que é uma anomalia, mas é graças a essa anomalia que nós estamos com o sistema completamente superlotado. Se não houvesse essa anomalia, se todos os juízes realmente considerassem a necessidade de comprovação da conduta, de provas concretas e tudo o mais, provavelmente não prenderiam como prendem, ou não manteriam presos como mantêm. A enorme maioria dos casos de tráfico acaba com condenação, mas em alguns deles pode ter absolvição, só que aí o réu já ficou um ano, dois anos preso, ou mais. Volto a dizer que espero que as audiências de custódia ajudem a reverter esse cenário das prisões provisórias, mas é preciso mudar a forma com a qual os juízes julgam processos sobre drogas. Se isso não for feito, de nada adiantará ter audiência de custódia.
Maíra Fernandes — É um absurdo. É um nonsense. Na verdade, é outro fator de aumento do encarceramento nos casos de tráfico, seja por conta da manutenção do condenado na prisão, seja pelas dificuldades de concessão de benefícios, porque a natureza hedionda aumenta a fração de pena necessária para se conseguir os benefícios. Então, isso dificulta consideravelmente a progressão de regime, o livramento condicional. Além disso, a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) veda graça, indulto e anistia ao tráfico de entorpecentes, previsão que não tem respaldo na Constituição Federal, pois esta só fala em graça e anistia, não veda o indulto ao tráfico. Os decretos presidenciais também reforçam, todos os anos, essa interpretação de que não cabe indulto em caso de tráfico. O decreto presidencial de 2016 foi pior ainda, recrudesceu consideravelmente os benefícios. Um atraso gigantesco. Ele acabou com a comutação da pena, que existe há mais de 17 anos, que dá um sopro de esperança para os presos. A norma também restringiu diversas hipóteses de indulto. Tudo o que havíamos avançado em relação aos indultos para mulheres retrocedeu. Esse decreto presidencial mostra bem a política do governo de recrudescimento da legislação penal. E eles vão piorar ainda mais o sistema prisional. O resultado disso são essas rebeliões. É muito claro que o governo só tem propostas de recrudescimento, de endurecimento da guerra às drogas. Basta ver a foto do agora ex-ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, cortando pés de maconha. Outro exemplo é a medida demagógica de usar as Forças Armadas para fazer revistas em presídios. Isso é ideia de quem realmente não conhece o sistema penitenciário.
Maíra Fernandes — Quando o Executivo vem com a desculpa de que "quem prende é o Judiciário", está coberto de razão, embora ele também tenha responsabilidade nisso – vide os decretos presidenciais. Existe uma parcela enorme de responsabilidade do Poder Judiciário nesse superencarceramento, que deve ser dividida em todas as instâncias.
Maíra Fernandes — Isso dá margem a arbitrariedades, sem dúvida alguma, porque quem diz o que é uso e o que é tráfico é o policial no momento da prisão. Se ele considera que a quantidade que a pessoa portava não é compatível com o uso, ele vai prender por tráfico. Por exemplo, digamos que um rapaz vá pegar uma quantidade de maconha porque vai dar uma festinha na sua casa. Daí ele pega um pouquinho a mais do que ele costuma pegar, porque ele quer distribuir para os amigos. Se fala isso para o policial, invariavelmente vai cair no tráfico, porque nos termos vagos da lei, e na interpretação restritiva dela, “distribuir” é tráfico. Além da falta de precisão da quantidade, ainda tem a vagueza do tipo penal do tráfico, que tem 18 condutas — uma elasticidade gigantesca. Mas eu não tenho certeza se a especificação das quantidades iria resolver o problema. Que quantidades vão ser essas? Quem irá especificá-las? Naquele caso que eu usei de exemplo, o rapaz continuaria sendo enquadrado como traficante, mesmo sem sê-lo. A certeza que eu tenho é que a ausência de uma especificação da quantidade, a vagueza, e a amplitude do tipo penal de tráfico fazem com que muitos usuários sejam presos como se traficantes fossem.
Maíra Fernandes — Não é legítimo. Essa é a discussão que está em pauta no Supremo, no julgamento que está suspenso desde setembro de 2015 após o ministro Teori Zavascki pedir vista. O porte de drogas é uma questão absolutamente pessoal. E mais: quando se descriminaliza o uso, passa a ser possível tratar os casos de uso patológico da droga como questão de saúde pública. As pessoas, normalmente, usam casos bem graves como exemplo contrário à autorização para o uso de drogas: "Fulano acabou com a vida, está em condições péssimas por causa de uso de crack". Só que, na verdade, essa pessoa não está sendo ajudada pela criminalização do uso de jeito nenhum, porque o caso dela não está sendo tratado como uma questão de saúde, e sim como questão criminal. A criminalização do uso de drogas não ajuda essas pessoas que fazem uso não recreativo, mas patológico, um uso que afeta realmente a saúde delas. Mas elas não podem bater em um posto de saúde e pedir ajuda livremente porque o problema delas é tratado como caso de polícia.
Maíra Fernandes — É um falso pretexto, porque a criminalização impede que esse tema seja tratado como tema de saúde pública. Um exemplo muito claro de como essa questão é tratada como um caso de polícia, e não de saúde, está nos choques de ordem que as guardas municipais promoveram nos últimos tempos. No Rio, passaram a prender viciados em crack que estavam no auge do consumo da droga. Essas pessoas eram presas nesse auge e tinham a síndrome de abstinência no presídio. Vários agentes penitenciários e o próprio subsecretário da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária me diziam que não tinham estrutura para receber aquelas pessoas, pois elas ficavam gritando, tendo alucinações típicas da síndrome. Isso ocorre porque essa pessoa não tinha que estar na prisão em nenhuma hipótese, ela tinha que ser levada para um atendimento social, uma política de redução de danos, algo que lhe desse perspectivas de emprego, recuperação da autoestima, ou mesmo, em alguns casos, para o hospital. Jamais para a prisão.
Maíra Fernandes — A melhor frase sobre isso foi dita pelo juiz Luís Carlos Valois em entrevista à ConJur: “Eu não sei quem são essas pessoas que estão doidas para fumar maconha, mas estão esperando ela ser legalizada para fazer isso. Eu não conheço ninguém assim. Não sei quem são os ingênuos”. Eu adorei essa frase, é a absoluta verdade. Quem quer usar, usa, sendo crime ou não. A regulamentação não vai aumentar exponencialmente o uso de drogas. Na verdade, talvez possa até diminuir, porque a criminalização gera uma curiosidade maior pelo proibido e porque os realmente viciados vão poder receber tratamento na rede de saúde pública, como ocorre em diversos países onde o uso das drogas é legalizado.
Maíra Fernandes — Não consigo imaginar como a regulamentação das drogas possa gerar um cenário pior do que o atual. Na verdade, o tráfico de drogas gera crimes muito violentos. Esses crimes não vão aparecer com o fim do tráfico, porque eles já fazem parte do mundo do tráfico de drogas, que, por ser atividade ilegal, exige o uso de armas e violência. Os traficantes se armam e praticam diversos crimes para manter esse sistema, que é totalmente criminoso. Isso é característico de qualquer máfia, de qualquer facção criminosa. Eles precisam proteger o negócio deles, que é criminoso, e por isso acabam recorrendo a essas atividades ilícitas. O tráfico de drogas é extremamente danoso à sociedade, é extremamente violento. E toda essa guerra às drogas só gerou mortes e violência ao longo dos anos. Inclusive de policiais e crianças, como lemos todos os dias nos jornais.
Maíra Fernandes — Sem dúvida alguma. E parte desse rendimento deles também deve ser utilizado em armamentos e corrupção, que só aumentam a violência. O tráfico gera todo um ciclo de violência. A guerra às drogas fez surgir essas facções. E o Estado fica em uma situação muito difícil sobre como lidar com essas facções. Primeiro que ele não conhece quase nada sobre elas, não tem quase nenhum dado sobre as facções. É absoluto o desconhecimento. Em relação ao sistema prisional, ou bem o Estado reconhece as facções e acaba dando muito poder a elas, ou ele ignora a existência delas. Mas se ele ignorar, “lavar as mãos”, acaba misturando os presos e permitindo que eles se matem — algo que o Estado não pode admitir, pois a vida e a integridade física dos detentos são de sua responsabilidade. É muito difícil lidar com as facções criminosas no sistema penitenciário. O mais prudente é separá-las e manter presídios neutros, nos quais ficam presos os que não são vinculados a nenhuma facção criminosa.
Maíra Fernandes — Primeiro tem que diminuir essa superlotação carcerária. Isso é para ontem. É preciso reduzir as prisões temporárias e preventivas — é injustificável que 40% da população carcerária seja formada de presos provisórios. Também é preciso discutir a Lei de Drogas. Diminuindo a superlotação carcerária, diminui-se uma série de outros problemas, porque muitos deles decorrem da superlotação, como os problemas de segurança nas unidades prisionais. Além disso, é necessário fortalecer as defensorias públicas e as varas de execuções penais. Eu fiz um levantamento no Conselho Penitenciário do Estado, em 2014, que apontou que os únicos estados que só tinham uma vara de execução penal eram Goiás, Pernambuco, Rio de Janeiro e Roraima. Só que esses outros estados têm muito menos presos do que o Rio, que tem 50,5 mil detentos. É injustificável ter apenas uma vara de execuções penais. É óbvio que tem gente que fica presa por mais tempo do que deveria, que tem gente que já poderia ter obtido livramento condicional, progressão de regime. São Paulo, por exemplo, tem 16 varas, e o Rio de Janeiro, uma. Outra necessidade é aplicar mais penas alternativas, porque elas são muito pouco usadas. Entendo o argumento de que é preciso que os tribunais tenham um mínimo de estrutura para aplicar essas penas alternativas. Tanto que defendo a criação de uma vara específica para a execução de penas alternativas no Rio. Mas elas já poderiam estar sendo aplicadas há muito tempo. E mais: é preciso incentivar e aumentar as audiências de custódia, com juízes vocacionados para isso.
Maíra Fernandes — Quando integrei a Coordenação Nacional de Acompanhamento do Sistema Carcerário do Conselho Federal da OAB, fiz inspeções em várias unidades Brasil afora. Quando fui inspecionar a prisão de Ribeirão das Neves (MG), fui com uma pontinha de medo, pensando: "Bom, ideologicamente eu sou contra as PPPs, mas será que eu vou chegar lá e vou ver que tudo funciona 100%? E aí eu vou mudar de ideia?". Uma vez lá, eu vi pontos positivos como limpeza e higiene, mas também vi uma unidade muito semelhante a uma pública, com outros problemas que esta não tem. Por exemplo, os presos reclamavam da ausência de assistência da Defensoria Pública e de outras assistências dentro do presídio, como a médica e a dentária. Mas a ideia da parceria público-privada era para ter esse problema. Percebi que isso se deve à lógica do lucro. No contrato firmado com o Poder Público, está escrito que a prisão tem que ter médico, mas não fica especificado quantos profissionais ou quantas vezes por semana deve ocorrer esse atendimento. Então, economiza-se colocando médico uma vez por semana ou colocando menos médicos do que precisaria ter. E os problemas permanecem.
Maíra Fernandes — Não funciona. E com esse formato que nós temos de prisões, sempre vai aumentar a reincidência. Essas prisões são universidades do crime, como eu já disse. Não acredito que a prisão seja para ressocializar, até porque esse termo é muito infeliz, pois a maior parte dos presos entra na prisão sem nunca ter sido socializado antes. A maioria dos que são presos não tem sequer identidade, não sabe nem assinar seu nome, têm escolaridade baixíssima, não têm os mínimos documentos, nunca exerceu a sua cidadania. Não vai ser entrando na prisão que eles vão ser ressocializados. Prisão, de modo geral, é pena, punição. O que não significa que não se possa ter iniciativas bacanas de trabalho e estudo para ajudar as pessoas a saírem dali, virarem essa página de suas vidas e recomeçarem. E os dados de reincidência são muito difíceis de serem diagnosticados — fala-se em índice de 25%, depois fala-se em 70%. Ninguém sabe direito quais são os dados de reincidência.
Maíra Fernandes — Eu não acredito em prisão, mas não posso deixar de destacar o que conheci de positivo. Há ideias diferentes de prisão que merecem uma atenção um pouco maior do Poder Público. Por exemplo, as Associações de Proteção e Assistência a Condenados (Apacs). Eu conheci uma Apac em Minas Gerais e fiquei muito impressionada. Primeiro porque foi a primeira vez que um preso olhou nos meus olhos. Isso nunca tinha acontecido — e eu já inspecionava presídios há anos quando fui a essa Apac. Ele apertou a minha mão, olhou nos meus olhos e falou: "Boa tarde, doutora". Eu chorei. Eu nunca tinha sentido uma emoção tão grande, porque ali eu realmente vi a possibilidade de fazer algo diferente para aquelas pessoas. Todos os presos trabalhavam e estudavam. Eles tinham uma auto-organização de disciplina, de responsabilidade. Faziam trabalhos como consertar as mesas e carteiras das escolas locais, remiam pena e eram remunerados por isso. Outra parte dos presos trabalhava em uma padaria, e os pães feitos lá abasteciam as escolas, e também eram vendidos para os restaurantes locais, o que gerava alguma renda para pequenas despesas na unidade. Tinha horário para tudo: se alguém não comparecia no horário certo, ou se não arrumava a cela como deveria, recebia pequenas sanções internas, convencionadas e aplicadas entre eles. E a chave da unidade ficava nas mãos de um preso. Os muros eram baixos, até eu conseguiria pulá-los, mas não tinha nenhum relato de fuga. É outro modelo, um modelo baseado no amor próprio, no respeito próprio, coisas que se perdem no sistema. Em todas as outras unidades que eu inspecionei, quando eu entrava no local, era mão para trás, cabeça para baixo, sabe? Uma absoluta submissão, o sujeito vira meio bicho. Mas também, ele é tratado pelo número, vira apenas mais um, perde a sua história, perde quem ele é. Na Apac, não. As pessoas são quem elas são, conscientes dos erros que cometeram, dos crimes que cometeram, e do quanto precisam trabalhar isso. Precisamos incentivar o uso das Apacs. Minha única ressalva é a de que a unidade que conheci tinha um forte apelo religioso. Mas é possível haver Apacs com as mesmas ideias, sem se valer unicamente da religião.
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