Francisco José Viegas tem uma “relação muito especial” com a Bíblia, mas desde que começou a ler os quatro evangelhos na nova tradução de
Frederico Lourenço que a Quetzal faz chegar às livrarias a 23 de Setembro essa “relação muito especial” transformou-se numa “aventura maravilhosa”. A leitura não confirmou apenas que são fundamentais para a cultura ocidental – fez com que descobrisse neles a “invenção do romance moderno”. “Ler esta Bíblia é uma aventura poética, uma aventura da história”, que muito se deve à coragem de Frederico Lourenço, “alguém que transformou um sopro num relâmpago”.
Viegas, editor da Quetzal, falava esta quarta-feira de manhã na Cinemateca, em Lisboa, numa conferência de imprensa em que apresentou esta ambiciosa edição que divide a Bíblia em seis volumes – dois dedicados ao Novo Testamento, quatro ao Antigo – como a mais completa alguma vez publicada em português. Isto porque, explicaria depois o tradutor, é feita a partir da Bíblia grega, que no Antigo Testamento tem 53 livros, ao contrário da hebraica, que tem apenas 24, e da católica, com 46.
Até aqui, as traduções disponíveis em português não incluíam todos os livros do Antigo Testamento. Esta passará a fazê-lo, o que significa que terá, ao todo, 80 livros e uma organização bem diferente da das traduções tradicionais, que segue a matriz latina e que começa no Livro do Génesis e termina no do Apocalipse. Uma organização que não é, de todo, cronológica (o Génesis não foi o primeiro a ser escrito). “A forma completa do Antigo Testamento nunca tinha sido editada”, diz Lourenço. À tradução do actual cânone católico juntar-se-ão sete livros: o 3.º e o 4.º dos Macabeus, Salmos de Salomão, Odes, o Livro de Susana, o de Bel e o Dragão e a Epístola de Jeremias.
Depois de ler o primeiro volume, o que junta os evangelhos de João, Lucas, Mateus e Marcos, Francisco José Viegas garante que esta nova edição é verdadeiramente uma “experiência múltipla”, em que a poesia, a história, a contemplação, a magia e o puro amor das palavras se encontram. E o tradutor, claro, “é o alquimista deste milagre”, um “milagre” que só não é “alquimia pura”, porque dá muito trabalho. “O Frederico Lourenço obrigou-me a ler a Bíblia de outra maneira, com novos sentidos, novas palavras.”
Texto que não se entende
Frederico Lourenço, escritor, poeta e especialista em cultura helenística que já traduziu para português obras tão fundamentais como
a Odisseia e
aIlíada, comprou a sua primeira edição do Novo Testamento em grego há mais de 30 anos, quando estava prestes a entrar no primeiro ano de Estudos Clássicos, quando era ainda um católico praticante “bem dentro da Igreja”. Hoje essa ligação perdeu-se – Lourenço continua a acreditar em Deus, mas já não é um católico praticante –, embora nunca tenha chegado para questionar a importância da Bíblia. “Descobrir mais tarde o Antigo Testamento em grego foi revelador, porque a versão grega mantém toda a qualidade poética que o texto tem”, diz.
Na tradução que está a fazer dos 80 livros da Bíblia cruza a grega com a hebraica para mostrar que há complementaridades e diferenças. As dezenas e dezenas de notas que cada um dos seis volume da Quetzal trará juntam-se às introduções para ajudar o leitor a compreender o texto e o seu contexto, falam da origem de determinadas palavras e alertam para esta ou aquela interpretação que, ao longo da história, deu origem a debate e até a outros escritos.
Frederico Lourenço quis com esta abordagem pôr à disposição uma edição para todos: “Falta
uma versão da Bíblia para crentes e não-crentes”, disse ao jornalistas, uma versão não-apologética daquele que é “talvez o livro mais importante de toda a tradição ocidental”. Para o tradutor, a Bíblia não devia ser um exclusivo das faculdades de Teologia, mas presença obrigatória em todos os cursos de Humanidades. “Esta edição tem uma intencionalidade linguístico-histórica, não teológica. (…) As notas tentam explicar a materialidade do texto, que muitas vezes não se entende.”
É precisamente porque o texto por vezes não se entende – e porque quer ser fiel ao que foi escrito, de acordo com a versão grega – que Lourenço optou por usar muito os parêntesis rectos ao longo do texto, assinalando as palavras que estarão subentendidas. “Às vezes o grego não nos permite atribuir um sentido exacto a determinada frase… Os parêntesis permitem-me dizer ao leitor o que foi realmente escrito e o que foi acrescentado para tornar o texto inteligível.”
https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/a-biblia-toda-e-para-todos-1739583
Nenhum comentário:
Postar um comentário